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18 de Abril de 2024

Perda de Uma Chance No Processo Penal

Publicado por Carla Setúbal
há 5 anos

Inicialmente, conceitua-se a teoria da perda de uma chance probatória como o ônus do autor da ação penal em produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador. De fato, com o advento do neoconstitucionalismo, o processo penal deve ser visto à luz da Constituição Federal de 1988 e, por consequente, a carga probatória é da acusação, ao acusado não cabe provar qualquer fato.

A teoria da perda de uma chance tem origem civilista (direito francês) e pode ser conceituada como a “oportunidade dissipada de obter futura vantagem ou de evitar um prejuízo em razão da prática de um dano injusto. A chance perdida precisa ser séria e razoável. O dano consistirá em lesão à expectativa legítima.”¹

Divide-se em:

a) oportunidade perdida de obter futura vantagem: “aquela que subtrai de alguém a possibilidade – série e razoável – de obter determinada vantagem concreta. Na teoria da perda de uma chance apesar de o benefício ser incerto o dano é certo.”²

Exemplo: vereador que não é eleito em razão de ser alvo de notícia falsa publicada por jornal, com diferença de apenas oito votos (STJ. REsp 821.004/MG).

b) oportunidade perdida de se evitar um prejuízo: “nesta modalidade, não há a frustração de uma chance de obter certa vantagem futura, porém a frustração da chance de evitar um dano cujos passos iniciais já foram dados.”³

Exemplo: erro médico, como, por exemplo, quando o tratamento da doença de forma inadequada reduz a possibilidade concreta e real de cura do paciente (STJ. REsp 1.254.141-PR).

Parte dos processualistas penais entende ser possível aplicar tal teoria ao Processo Penal, conforme bem destacado por Rodrigo em sua resposta:

Nesse contexto, é de ser afirmar que a teoria da perda de uma chance pode, e deve, ser aplicada ao Direito Processual Penal. Isso porque num processo democrático não pode o acusador se dar por satisfeito na produção da prova do e pelo Estado (importância da investigação criminal defensiva), eximindo-se das demais possíveis, até porque não se trata mais de verdade real, mas de verdade produzida no jogo processual.

Conforme Alexandre Morais da Rosa, compete ao Estado-investigação e ao Estado-acusação produzirem todas as provas possíveis e factíveis, de modo a comprovar a consistência da peça acusatória. Não o fazendo, retiram da defesa a chance de impugnar adequadamente o contido na denúncia.

Exemplo disso é a utilização exclusiva de elementos investigativos policiais para a propositura da ação penal, já que em tais casos ocorre verdadeira antecipação da produção da prova para momento do qual o acusado sequer participou, restando violado os princípios do contraditório e da ampla defesa. Se o Estado-acusação, por conveniência, limita-se a reproduzir em juízo elementos confeccionados exclusivamente pela autoridade policial, extirpa do acusado a chance de produzir adequadamente sua defesa.

Para Alexandre Morais da Rosa, a teoria pode ser aplicada aos casos de tráfico de drogas, já que em tais situações as condenações, de modo geral, têm por fundamento tão somente o testemunho dos policiais responsáveis pela prisão em flagrante, ou o descrito no inquérito policial.

O autor traz os seguintes exemplo de como isso seria possível4:

– a prisão em flagrante ocorre quando o acusado é abordado vendendo droga para alguém, mas nenhum comprador é identificado no inquérito ou presta declaração, muito menos é conduzido pela autoridade policial;

– a abordagem policial é feita no momento em que a venda está sendo feita entre veículos, mas sequer as placas dos usuários são inseridas na investigação.

Em tais hipóteses, “os agentes de segurança pública deixam de colher prova potencialmente isenta, não por ausência de possibilidade de produção da prova mais adequada, mas sim pela cômoda adoção da lei do menor esforço e pela confiança na atribuição de alta confiabilidade aos seus próprios relatos.”5

Por fim, como exemplo, pode se citar o caso do acusado que é preso na posse de drogas. Nessa senda, cabe ao órgão ministerial provar que, de maneira inequívoca, que a droga apreendida era de fato destinada à comercialização e, mais do que isso, que o acusado possuía relação com a droga apreendida, pois caso assim não se proceda prevalece a versão de que o entorpecente destinava-se ao consumo. Tal posição já foi albergada pelo Superior Tribunal de Justiça.

Excelente exemplo trazido pelo leitor. Cabe ao Ministério Público demonstrar que o entorpecente seria destinado ao tráfico, e não ao acusado comprovar que a droga tinha por finalidade o consumo próprio. Se o órgão acusador não consegue demonstrar de forma inequívoca que a conduta amolda-se ao tipo penal do artigo 33 da Lei de Drogas, prevalece a versão do acusado de que o entorpecente era para consumo próprio, e não destinado à narcotraficância.

Isso porque, segundo Alexandre Morais da Rosa, “cabe indagar se o Estado polícia, acusador e juiz, não deve exigir a produção de todas as provas possíveis, sob pena de flexionar a presunção de inocência pressuposta em nome da facilidade da condenação, fazendo com que o acusado perca a chance de questionar a consistência e coerência de todas as provas.”6

Assim, para parte da doutrina, é perfeitamente possível aplicar a teoria, já que “o dano decorrente da condenação, mesmo ausente a produção de prova possível, implica no reconhecimento da modulação, invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal. Não se trata de dano hipotético ou eventual, mas sério e real da liberdade de alguém. A perda da chance probatória por parte do Estado acusação gera o nexo de causalidade com a fragilidade da prova que poderia ser produzida e, com isso, diante da omissão estatal, pode-se aquilatar, no caso concreto, os efeitos dessa ausência. Dado que a única presunção constitucionalmente reconhecida é o da presunção de inocência, não produzida prova capaz de corroborar a palavra isolada dos policiais, em muitos casos, a condenação será abusiva, (…)”.7

A teoria da perda de uma chance, pode, portanto, ser transportada ao Processo Penal para o fim de “justificar teoricamente a absolvição pela falta de provas possíveis, não apuradas, não produzidas, mas factíveis, prevalecendo a presunção de inocência.”8

No entanto, a teoria ainda encontra resistência nos Tribunais, sob o argumento de que seria um instituto inerente apenas à responsabilidade civil, não sendo possível trazê-lo para a esfera criminal.

Nesse sentido, segue abaixo decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

APELAÇÃO. DELITOS DE EMBRIAGUEZ AO VOLANTE (ART. 306 DO CTB) E ART. 303 (LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR) (…) RECURSO DEFENSIVO PUGNANDO: 1) A ABSOLVIÇÃO DE AMBOS OS DELITOS POR ALEGADA INSUFICIÊNCIA DE PROVAS E SOB A TESE DA PERDA DE UMA CHANCE; (…) Em verdade, ao contrário do que sustenta a Defesa, o laudo de exame de corpo de delito de alcoolemia atesta que o réu não permitiu a coleta do material para a realização de tal exame. Descabido o requesto de absolvição sob a tese de “perda de uma chance” vez que a mesma não tem aplicabilidade na esfera penal ou processual penal, em matéria probatória, considerando ser restrita à seara da responsabilidade civil. (…) (TJ-RJ – APL: 03928934120148190001 RIO DE JANEIRO CAPITAL 42 VARA CRIMINAL, Relatora: ELIZABETE ALVES DE AGUIAR, Data de Julgamento: 07/02/2018, OITAVA CÂMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 15/02/2018)

O Tribunal de Justiça de São Paulo também já decidiu de modo semelhante:

PENAL. APELAÇÃO. APROPRIAÇÃO INDÉBITA. CONDENAÇÃO. RECURSO DA DEFESA. Apelo visando à absolvição por falta de provas, ausência de dolo e pela teoria de perda de uma chance, com pleito subsidiário pela mitigação das penas. Descabimento. (…) 2) Inaplicabilidade da théorie de la perte d’une chance. Doutrina francesa de matiz, eminentemente civilista, voltada a definir os parâmetros de reparação material em favor de quem deixou de usufruir ganho patrimonial legítimo. Inaplicabilidade na seara penal, ainda mais em favor do acusado. (…) (TJ-SP 00035437120148260664 SP 0003543-71.2014.8.26.0664, Relator: Alcides Malossi Junior, Data de Julgamento: 19/10/2017, 8ª Câmara de Direito Criminal, Data de Publicação: 23/10/2017)

De outro lado, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já entendeu pela aplicação da teoria, em caso de tráfico de drogas:

APELAÇÃO. TRÁFICO DE DROGAS. INSUFICIÊNCIA PROBATÓRIA. ABSOLVIÇÃO DECRETADA. 1. O não enfrentamento de tese defensiva inequivocamente gera para o acusado a perda de uma chance de obter um provimento jurisdicional favorável, e justamente nesse ponto está a evidência do prejuízo, a impor a desconstituição do julgado. No caso, a defesa sustentou a causa excludente de tipicidade contida no art. 20, caput, do Código Penal. O não enfrentamento de tese defensiva constitui inequívoca nulidade. (…). (TJ-RS – ACR: 70076147867 RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Data de Julgamento: 23/05/2018, Terceira Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 11/06/2018)

A teoria da perda de uma chance probatória é uma excelente tese defensiva e pode aparecer na sua prova. Veja como o tema foi cobrado na segunda fase da Defensoria Pública de Santa Catarina (2017):

A seguir o espelho de correção, com as abordagens esperadas pela banca examinadora:

Fonte: Cliquejuris, Bruno Cajazeira Campos

  • Sobre o autorCasada com o direito penal, porém, também namora o direito civil.
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